Desde as manifestações de 2013, vive-se claramente um processo de retomada da noção de público no Brasil e em especial nas metrópoles como São Paulo. Em um contexto de especulação e de uma cidade mercantilizada, onde espaços assim como serviços públicos passam a ser atravessados pela intenção de acumulação de capital, e diante de uma realidade em que o poder público é somente poder (nada tem de interesse público), é possível perceber um movimento crescente de reapropriação dos espaços da cidade por parte de atores antes invisibilizados.
Movimentos legítimos, que se apropriam de espaços muitas vezes abandonados ou “vazios” requalificando-os, ativando-os, atribuindo a esses bens uma função social. Além de fertilizar tais espaços, tornando-os lugares praticados (CERTEAU, 2007), estas ações insurgentes qualificam uma outra relação: que não passa pela posse, comercialização, individualização e exclusão, mas sim pela solidariedade, pelo cuidado, pelo pertencimento - à comunidade que se cria ali. No entanto, historicamente também, tais organizações sociais são criminalizadas ou estigmatizadas - pela grande mídia ou sociedade em geral.
É urgente que comecemos a abrir os olhos e os braços: escutar o que emerge, reconhecer o valor que pulsa nesses desejos, acolher tais manifestações e proteger estes territórios socioculturais de reinvenção de formas de vida e relação. É fundamental a demarcação da terra pública, comum: que é direito de todos e dever de todos preservar e cuidar para que não seja extinta, explorada ou mercantilizada. Como preservar e proteger tais territórios comunitários em disputa? Como seria usar a arquitetura como um instrumento de descentralização de poder e de luta por direito à cidade através de iniciativas comunitárias? O modelo de gestão da cidade e dos espaços e equipamentos públicos não permite a gestão compartilhada com a população - o que significaria, portanto, pensar em uma prática de arquitetura e urbanismo que fomenta a autonomia?
Desde os anos 80 na América Latina, com as cooperativas habitacionais uruguaias e as assessorias técnicas a movimentos sociais nas periferias de São Paulo, diferentes alternativas baseadas em práticas espaciais críticas, coletivas e inovadoras foram desenvolvidas e prototipadas, apontando para experiências de democracia em ação e processos de emancipação social. Além disso, há anos que diversos movimentos periféricos, de minorias [1] vem emergindo, lutando pelo seu direito de existência, amplificando suas vozes e ocupando outros espaços na cidade. São ativados territórios educadores: insurgências, espaços de (r)existência, autonomia, solidariedade e comunidade, de cuidado e apoio mútuo entre diversos grupos - movimento social da cultura e resgate da ancestralidade, permacultura e soberania alimentar, luta por moradia e por terra, LGBT, mulheres, imigrantes, indígenas, negros, população em situação de rua, dependentes químicos, saúde mental, crianças e adolescentes. O que precisamos para criar uma cartografia de afetos, uma ampliação do diálogo entre populações sociais historicamente oprimidas, construindo assim uma luta por direitos humanos através de uma agenda ampla?
A variedade de alternativas de infra-estrutura social criada de forma autônoma e comunitária reitera a necessidade da aproximação do(a) arquiteto(a) ao território para o fortalecimento de um processo de transformação social. Através das respectivas práticas, o Instituto A Cidade Precisa de Você e o Escola Sem Muros têm investigado formas de desenhar novas estratégias de construção da cidade com as comunidades locais e a partir dos territórios em que estão inseridas, da base para cima - através de políticas públicas de participação direta e descentralizadas e modos de produção mais horizontais, colaborativos e situados. Entende-se que, para alcançar outras práticas, é fundamental que haja um processo de aprendizagem distinto, que ultrapasse a estanqueidade dos processos pedagógicos restritos aos muros da universidade e distantes da realidade social.
Onde cidade, arquitetura, autonomia e educação se encontram? Como reconhecer e valorizar espaços comuns e as experiências de aprendizagem que neles acontecem? Que história espaços comunitários carregam? Como praticar uma descolonização do imaginário, e cultivar territórios educadores e autônomos? Como construir currículos pautados na prática real? Quais as ferramentas utilizadas para produzir conhecimento a partir da experiência? Quais os agenciamentos necessários para construção e proteção de territórios autônomos? Como co-criar e co-gerir a cidade?
O Seminário “Arquitetura para Autonomia: ativando territórios educadores” que acontecerá em São Paulo do 29 ao 31 de março de 2019, busca criar um espaço de diálogo e produção coletiva coletiva de conhecimento, demonstrando outras possibilidades de atuação que colocam em prática a função social da profissão, problematizando as disputas de territórios contemporâneos e a ativação de redes de troca e afeto. Diante de um cenário de crise, busca-se investigar uma arquitetura acessível e modos de produção libertários, pautados na construção coletiva, trabalho livre e canteiro-escola.
Este evento tem como objetivo trazer à pauta a prática e o ensino da arquitetura e urbanismo, hoje bastante restritos à academia, entendendo a relação fundamental entre teoria e prática, e fortalecendo iniciativas de reflexão-em-ação fora dos muros da universidade. Intentamos assim articular as diferentes iniciativas existentes que se pautam nesta crítica, possibilitando a troca de experiências e o agenciamento de novas práticas que possam surgir a partir destes encontros. Diante deste objetivo, questiona-se o modelo de seminário comum à academia e propõe-se uma série de práticas e mesas de diálogos temáticas, espaços autogestionados dos quais podem emergir inteligências coletivas.
O Seminário é proposto em uma parceria do Instituto A Cidade Precisa de Você com o programa Escola Sem Muros. O Seminário, realizado em parceria com diversos escritórios de assistência técnica, educadores, coletivos, movimentos e espaços comunitários de São Paulo e do Brasil, conta com apoio do CAU/SP através do Termo de Fomento Nº. 020/2018 firmado com o Conselho por meio do Edital de Chamamento Público Nº. 001/2018.
Ao final do processo, será produzida uma publicação com relatos de experiências práticas que estão desenvolvendo uma arquitetura autônoma e contribuindo para a ativação e fortalecimento de territórios educadores, construindo uma narrativa comum do bem viver também nas cidades como utopia latino-americana.
Notas
1. Minorias não em termos de quantidade, mas em relação à representatividade de tais grupos identitários no poder estabelecido e institucionalizados.